A MISSÃO É UMA AVENTURA E PORQUE ISSO NÃO É RUIM
Passei a primeira metade da adolescência devorando literatura de aventuras. Umas comuns com piratas e tesouros e detetives (não é mesmo, caro Watson?) e outras mais elaboradas, profundas até, bem mais do que eu pudesse identificar àquela altura do campeonato. Expedições ou viagens ao centro da terra, ou ao centro do próprio homem, formavam um grande tema na literatura clássica no século XIX e dois séculos depois continuaram a fazer a cabeça dos leitores, ainda que fora do mainstream.
No meio cristão essas aventuras eram repetidas na contação de histórias missionárias. Essas famílias se mudavam para cenários inóspitos e desafiadores afim de falar do evangelho a todo homem, mulher e criança. Muitos morriam no percurso, outros continuavam até o fim das suas vidas identificados ao povo e à nova cidade que escolheram amar. Uma baita aventura de amor a Deus e às pessoas, porque isso existe sim.
Arthur Grupillo [1] chama atenção a esse fato : a palavra aventura e o adjetivo aventureiro possuem uma conotação passional demais, irresponsável até, no nosso vocabulário. Embora isso, as grandes aventuras da vida humana são movidas por valores grandiosos e mediadas por coragem, amor ao próximo e senso de coletividade. Gostaria de falar um pouco mais sobre estes aspectos.
Não há aventura sem coragem — Júlio Verne que o diga. Não há invenção, não há descobertas. Seja em uma tarde ensolarada pelo campo ou escalando a montanha de Yosemite sem equipamentos [2], a jornada do aventureiro exige ousadia e, para alguns, até uma dose de loucura.
Mas nada desse ímpeto se aproveita se com a coragem não aparecerem outros valores como sabedoria, disciplina, espírito ensinável e capacidade para descansar, física e mentalmente.
O ansioso encontra várias barreiras nesse processo — sem poder prever tudo o que acontecerá, sem muito jogo de cintura para os entraves que surgem no meio do caminho ele tende a estancar; o irresponsável tem grandes riscos de voltar ao ponto inicial várias vezes, porque impelido pela paixão e empolgado por natureza ele não planeja adequadamente nem observa quais serão suas necessidades; o tolo, tantas vezes citado nos livros de sabedoria bíblica, não se propõe a aprender com a experiência de outros nem sabe acolher conselhos.
Muitos dos aventureiros modernos, se caminharmos no sentido de ampliar os usos dessa palavra, se enquadram nos perfis acima. Largam tudo com coragem, mas sem as demais virtudes, e por isso têm sua jornada prejudicada no final das contas. No entanto, a falta de coragem do outro grupo de pessoas também fala muito sobre seus valores. O comodismo atrapalha, o consumismo sempre crescente e o apego extremo ao estilo de vida tiram o pouco oxigênio que resta do indivíduo — ele apaga.
A verdadeira aventura também pede amor ao próximo, e por isso seria bom diferenciar dois tipos de jornada: o primeiro tem como alvo principal a busca de si, em um movimento de encontro consigo mesmo, e o segundo tem como alvo principal chegar a determinado alvo, seja uma nova ideia, um lugar, um objetivo.
Herman Bavinck [3] observou que o século XIX trouxe duas tendências de pensamento muito fortes: por um lado, existia o ideal da autonomia, do anarquismo do pensamento e da capacidade de o homem salvar a si mesmo no encontro da natureza. A pintura, a literatura e a filosofia expressavam esses valores com muita clareza. Por outro lado, também existia uma “busca pela religião, pelo deus supremo, pela felicidade permanente, pelo verdadeiro ser e pelo valor absoluto”(BAVINCK, 2019, p. 84), mas a figura do Deus pessoal visto em Cristo era paulatinamente desconsiderada.
Fotografia de Jack London, exemplo vivo de um aventureiro e grande escritor norte-americano que encarna o ideal da autonomia e busca de si no encontro da natureza. Vide títulos dos mais conhecidos dos seus livros: “O Lobo do Mar”, “Caninos Brancos” e “O Chamado Selvagem”.
Todas essas tendências são passíveis de conduzir o homem a uma aventura do primeiro tipo: uma busca sincera pela verdade por outros caminhos, em um movimento de afastamento de Deus — uma negação de encontro com Ele. Por vezes esse afastamento nem é tão filosófico assim. Às vezes é um entregar-se às paixões, uma mudança brusca sem ouvir o que Deus fala sobre os novos rumos, uma aventura fugaz, de correr atrás do vento.
O segundo tipo de jornada, que possui um alvo fixo, guarda a pessoa de pensar só em si e na sua busca: o aventureiro é forçado a olhar para frente, em vez de olhar apenas para suas questões ou desejos.
Ele se desloca e amplia a visão — vê o cenário maior, the great picture [4]. A sua visão o envolve, e ele é capaz de estimular grupos de pessoas para estarem com ele na empreitada. O alvo o empolga e vai além dele mesmo: são os resultados, as consequências positivas para si e para os outros que não o deixam desistir da aventura.
A grande sacada é perceber que o autoconhecimento aparece na jornada, assim como o prazer e a felicidade, mas não são o alvo último dos acontecimentos.
Por fim, após ver os aspectos da coragem e do amor ao próximo, é importante não esquecer do senso de coletividade que a aventura verdadeira é capaz de desenvolver. São vários os relatos de jornadas que tiveram que mudar os objetivos no meio do caminho para resguardar em primeiro lugar a equipe [5]. A família, a igreja, a missão, o grupo, surge como uma necessidade maior: é preciso manter todos vivos e bem.
Ao observar as Escrituras, podemos ver que embora a caminhada com Cristo tenha seu aspecto individual e precise ser fruto de uma decisão pessoal, não somos chamados a continuar sozinhos nessa aventura: ao longo do caminho vamos nos juntando a outros aventureiros no mesmo objetivo, perseguindo o mesmo alvo (Filipenses 3:12–14) e cuidando uns dos outros [6].
Que diremos pois? Como cristãos, temos à porta uma aventura que se sobrepõe a todas as demais que escolhermos engajar, uma aventura de um alvo maior, como a do segundo tipo.
Nossa caminhada cristã precisa ser uma aventura que escoa o comodismo, a ansiedade, o olhar ensimesmado e a ilusão de autonomia. A aventura é a própria solução para muitos desses entraves!
Quando a coragem humana falha, a força do Espírito de Deus nos encoraja e nos capacita a sermos corajosos em amor, a Deus e aos demais. Se a tendência é a solidão, somos chamados a convidar outros a fazerem parte do que Deus tem efetuado em nós e através de nós. A vida cristã com essa perspectiva, na cidade natal ou em mares distantes, expressa a aventura da missão.
O comportamento do cristão aventureiro, ainda que permaneça fisicamente onde está, reflete as características do Peregrino, um dos personagens mais conhecidos da literatura cristã, que não sem propósito, é uma alegoria aventureira.
Portanto, avante! Saiamos fora do arraial, como nos lembra o escritor de Hebreus (Hb. 13: 13–14), sabendo que aqui não temos cidade permanente, não considerando nada precioso demais, deixando “todo peso que nos torna vagarosos e do pecado que nos atrapalha, e corramos com perseverança a corrida que foi posta diante de nós”. Mantendo o “olhar firme em Jesus, o líder e aperfeiçoador de nossa fé” (Hb. 12:1–2).
Por Joyce Medeiros de Melo
*O conteúdo deste texto é de responsabilidade de seu(s) autor(es) e colaboradores diretos e não reflete necessariamente a posição do TeachBeyond Brasil ou de sua equipe ministerial.
Refêrencias:
[1]. GRUPILLO, Arthur. Por uma filosofia da aventura. In: Estado da Arte: revista de cultura, artes e ideias. São Paulo, 18 de março de 2022. Disponível em: estadodaarte.estadão.com.br. Acesso: 22 de abril de 2022.
[2]. Alex Honnold, escalador solo, resolveu escalar El Capitan, em Yosemite, sem equipamento de segurança. A National Geographic fez um documentário sobre essa empreitada intitulado Free Solo, vencedor do Oscar 2019 na categoria.
[3]. Bavinck, um importante teólogo holandês, ofereceu base filosófica e teológica a diversos outros teólogos neocalvinistas que vieram após ele. HERMAN, Bavinck. A filosofia da revelação. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Monergismo, 2019.
[4.] The great picture, além de ser uma brincadeira com a expressão inglesa “the whole picture”, que significa para “ver o todo”, “a imagem completa”, também é o nome da maior fotografia impressa do mundo, registrada no Guinness World Record.
[5]. Além de diversas histórias, gostaria de indicar o documentário A Corrida Mais Difícil do Mundo: Figi Eco-Challenge (2020). Nela, os integrantes devem terminar um percurso altamente desafiador com toda sua equipe, o que os leva a pensar no todo estrategicamente. Disponível na Amazon Prime Video.
[6]. C. S Lewis possui uma palestra singular sobre a relação entre coletividade e individualidade. Ver: LEWIS, C.S. Membresia. In: ______. O peso da glória. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. Cap. 7.
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